Hoje é um dia de tristeza, 1.314 semanas atrás saía de Boa Vista para assumir meu cargo de agente de saúde pública em São Gabriel da Cachoeira. Aos 22 anos de idade navegava pelas mansas águas do rio Negro, pensando em como sobreviver sozinho, seria na prática minha primeira vez por conta, como se fala aqui nas terras de makunai’mî. O concurso da FNS, posteriormente Funasa, para atuar no distrito sanitário especial indígena Yanomami, mudaria completamente minha vida.
Em Gabriel, conheci de perto as comunidades indígenas Yanomami, Desana, Baniwa, Tucano e Maku, bem como a lógica da vida no interior e a valorização da diversidade cultural que move esse lindo país. O caxiri, a quinhapira lá em Gabriel aqui a damurida, as danças, as múltiplas formas de línguas e o nheengatu encantaram as múltiplas formas de perceber o mundo. Agradeço muito a oportunidade de o país ter me proporcionado a possibilidade de aprender a viver livremente, sem amarras e subterfúgios sociais.
Alegrias como aprender a identificar o plasmodium no microscópio e poder contribuir com o salvamento de uma vida me encantou. Porém, fui seduzido pela entomologia, atividade que me permitiu além dos vinhos de acaí, bacaba, tucumã e pupunha conhecer pessoas, viver suas realidades em vicinais, ilhas e comunidades indígenas. Compreender o papel do Estado e suas políticas públicas na garantia de direitos elementares, enfim do direito à vida, muitas vezes ceifadas pela malária ou pela ineficiência do estado brasileiro.
Aprender a identificar mosquitos, fazer captura de alados, identificar larvas e construir estratégias junto aos demais colegas para interromper ciclos de transmissão da doença, como as incansáveis buscas ativas de casos assintomáticos, promoveram alegrias, algumas tristezas, ao não chegarmos a tempo de garantir o cuidado. Nesta labuta, o tempo mais sombrio, foi quando fui escalado para trabalhar na aplicação de inseticida. Apesar dos equipamentos de proteção – de péssima qualidade –, sofri bastante, pois o veneno maltrata muito, na época usávamos o malhation, um inseticida da classe dos organofosforados.
Foi a Funasa que me permitiu, ainda em 1999, conhecer a comunidade Pohoroa localizada aos pés do pico da neblina. Chegar não foi uma tarefa fácil, pois o igarapé que liga o rio Marauiá até a comunidade é estreito, com muitas árvores caídas – graças as habilidades do motosserra do prático passamos – além de muita formiga, cujas picadas incomodavam muito. Porém, a alegria de encontrar uma comunidade isolada das influências da cidade me trouxe uma paz interna e a certeza que aquele seria meu trabalho, independente da remuneração.
Esses primeiros anos de minha vida profissional como agente de saúde pública permitiu compreender a essencialidade da reforma sanitária e da importância do SUS para a garantia de um múltiplo olhar sobre as determinantes de saúde que impõe a grande maioria do povo brasileiro, indígena e não-indígena processos de adoecimento. Ser um trabalhador do SUS, tornou-se uma satisfação de engrandecimento pessoal e comunitário, pois muitas foram as conquistas, as vezes consolidadas com parcos recursos públicos, mas eficientes na construção de um bem-estar. Surge em minha vida a educação em saúde como processo central de transformações da realidade de exclusão social e sanitária.
Em 2000, retorno para Boa Vista, vou atuar nas ações e serviços de educação em saúde e contribuir com a política de comunicação da Funasa. Neste campo de atuação tive a oportunidade de conhecer meu Estado, viajei por vicinais, comunidades indígenas, além de vilas e sedes municipais desenvolvendo ações de construção de conhecimentos, fortalecimento do SUS, controle de endemias, fortalecimento das ações de saneamento, além de qualificar equipes técnicas para o necessário trabalho de escuta e consolidação de políticas no setor saúde.
A descentralização das endemias para os municípios, consistiu em um passo adequado, porém muito traumático aos colegas de trabalho, oriundos da antiga SUCAM. Assumíamos um novo nome, Funasa, bem como duas novas missões: promover a saúde indígena e o fortalecimento das ações de saneamento nos municípios. Em 2010, a saúde indígena também saiu, os colegas em outro processo traumático também se foram. Fiquei para contribuir com as políticas de saneamento, necessárias em um Estado que não disponibilizava água potável nas áreas rurais – se bem que temos muito a fazer, mas o dinheiro de nossos impostos financia bancos, não políticas públicas.
Infelizmente as interferências políticas me afastaram da instituição em alguns momentos, por meio de cessões ao município de Boa Vista e ao Estado de Roraima, ações essas que não me afastaram da formulação de políticas para os cidadãos e cidadãs do interior. Tive a oportunidade de criar, junto a uma equipe maravilhosa o programa de saúde rural para atender os assentamentos de Boa Vista. Conseguimos um resultado tão bom que os usuários, parentes dos assentados, vinham da sede municipal para serem atendidos em nossos ônibus.
No Estado fui trabalhar no controle das arboviroses por meio de atividades de educação em saúde nas escolas e na elaboração do programa de controle da proliferação do Aedes aegypti nas repartições públicas. Foi uma surpresa compreender como os órgãos públicos contribuíam para proliferação do vetor, consequentemente a proliferação do adoecimento da população. Com muita dedicação conseguimos implementar uma política sólida. Infelizmente não teve continuidade, assim é nosso querido país. Retorno a Funasa, devido as pressões políticas, vou para um setor que me possibilitou apreender muito, gestão de convênios. Estudar, ler e compreender limites da política de financiamento da Funasa que impunham reprovação na aplicação de recursos e a consequente abertura de tomadas de contas especial.
A Funasa me proporcionou muito aprendizado, me possibilitou andar, conhecer e viver a vida das pessoas que efetivamente constroem esse país, porém invisibilizadas, mas a Sucam, a CEM, a Sesp, constituidoras da história da saúde pública transmitiram seu legado a Funasa. Sempre chegamos. Por mais que as contenções orçamentárias impusessem dificuldades, estávamos lá, promovendo saúde, cidadania e esperança.
Porém, a esperança arrefeceu, justamente quando retorna ao poder um governo eleito pelos mais pobres. A instituição responsável pelo saneamento rural e por ações de saneamento ambiental e monitoramento da qualidade da água é extinta pela medida provisória 1156/2023. O projeto Saneahr que possibilitava levarmos água potável as escolas públicas das vicinais de Rorainópolis – nosso projeto piloto – deixou de existir, permanecerá a contaminação por E. coli. O programa Salta-Z que zerou os casos de diarreias em comunidades indígenas, assentamentos e ribeirinhos parou, existirá apenas em relatos, caso a medida provisória não seja rejeitada. A elaboração dos planos de saneamento básico para 6 municípios de nosso estado, em parceria com a UFRR, transformou-se em pó.
O que fica é a tristeza de ver as pessoas mais pobres serem abandonadas por um governo que ajudaram a eleger. O fim da Funasa constitui em um erro estratégico do governo federal, quando estamos a viger a política privatista, do setor de saneamento, aprovada pelo governo Bolsonaro. Por que? Não encontramos respostas plausíveis para o fim da instituição responsável pela implementação do saneamento rural, voltado a atender as necessidades de ribeirinhos, assentados e quilombolas.
Neste dia de choro, e lembranças da trajetória me disperso da Funasa, espero que temporariamente. Agradecendo a sociedade brasileira os investimentos feitos em minha pessoa, poderia aqui falar dos processos de gestão, os quais tive oportunidade de exercer, porém, foi o campo que me tornou um servidor público do SUS. O destino é incerto, a certeza que tenho é que continuarei a lutar em defesa de uma saúde pública de qualidade e de um saneamento inclusivo para todos e todas que financiam, com seus impostos este país. Um forte abraço. Continuemos a resistir mesmo diante do desmonte de políticas públicas.
Fábio Almeida
Jornalista. Historiador. Servidor do SUS.
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